Um monstro chamado Tourmalet

Viagens

Uma viagem de automóvel entre Portugal e França pressupunha percorrer cerca de 1500 quilómetros em dois dias. O itinerário ideal sugeria entrar em Espanha pela fronteira de Chaves, seguir em direcção a Nordeste e passar para o território francês perto do Golfo da Biscaia, no extremo ocidental da cadeia montanhosa dos Pirinéus.

Rumo a Este, tinha de cruzar a infame pelo lado Norte. No meu pensamento surgem imagens de superação. Recordações de infância, da adolescência. Memórias das férias de Verão. Do tempo em que, com temperaturas proibitivas, as tardes eram passadas resguardado do sol, em casa, muitas vezes em frente à televisão. Às vezes, porque durante a Volta a França, apenas os dias de montanha me deixavam colado ao ecrã.

A passagem pelos Pirinéus era sempre marcante. Em particular, o Tourmalet. Não eram os nomes, os símbolos de uma modalidade que durante 23 dias se excedia e superava limites. Era o desafio, a capacidade de fazer o quase impossível que me fascinava.

Ao volante, ali estava eu, a passar ao lado dos Pirinéus. Numa das paragens, ainda em Espanha, uma breve pesquisa na Internet deixou perceber quão longe do topo da mais marcante subida iria passar. Não era um grande desvio. Perfeitamente exequível. Apenas implicava percorrer, no primeiro dia de viagem, mais de 900 quilómetros.

O Tourmalet fica a 2115 metros de altitude. É o topo montanhoso com acesso por estrada de asfalto mais alto nos Pirinéus. Tornou-se um símbolo de ambição e superação, em particular para ciclistas, a partir de 1910, ano em que a organização da Volta a França o integrou no percurso da mais importante prova de ciclismo no planeta.

Campan é uma localidade praticamente no sopé dos Pirinéus. É a partir daí que em inúmeras ocasiões, os ciclistas profissionais se lançaram ao ataque desta que é uma das mais impressionantes subidas do ciclismo mundial. Nova busca cibernética à procura de um local para pernoitar. Independentemente da proximidade ou não do Tourmalet, precisava de descansar.

O início oficial de uma das subidas é em Sainte Marie de Campan. São pouco mais de 17 quilómetros até ao alto. O local onde fiquei era um pouco mais acima e, sem definir planos, sabia que, se decidisse lançar-me ao desafio, tinha duas hipóteses: ou descia até à localidade e fazia tudo desde o início ou partia logo dali.

O despertador ainda não tinha tocado quando acordei. Era noite escura. Tive de esperar. Foi quando começou a amanhecer, já equipado, que saí. A pedalada não era vigorosa. Aqui não importava nada relacionado com a técnica do ciclismo, como a cadência, a velocidade ou o pulso. Apenas sentia que estava a pisar os mesmos centímetros de chão que aqueles enriqueceram o meu imaginário desportivo.

O final de setembro nos Pirinéus pode ser frio. Estavam 10º quando arranquei à conquista do Col du Tourmalet. A vegetação era verde e a estrada estava deserta. Ouvia-se água a correr e, junto à berma, de quilómetro em quilómetro, há um sinal que nos diz o que nos espera. Por exemplo:
Altitude: 1385 m.
Sommet à: 8 km
Moyenne de la pente: 8,5%
Durante a subida, as marcas da Volta a França são evidentes. E recorrentes. Há bicicletas desenhadas. Há a forquilha do diabo que já se tornou indissociável das principais corridas de bicicletas.

A altitude mais elevada faz baixar a temperatura. O mínimo foi de 6º. O tráfego era quase inexistente. Passavam apenas alguns carros com agricultores ou corredores que iam explorar a serra. A vegetação tornava-se mais baixa. Havia vacas a pastar junto à estrada. O topo estava mais perto e as últimas casas situavam-se a cerca de 1700 metros de altitude. É La Mongie, estação de esqui que, àquela hora, ainda não tinha qualquer café aberto. Parar estava, por isso, fora de questão. E o Tourmalet esperava-me.

Só depois do aglomerado de betão é que senti o sol que já ia alto. Ajudava a relativizar o frio sentido, tal como a ascensão ininterrupta desde que comecei a pedalar. Entretanto, parece que os Pirinéus se transformaram. O ar era mais rarefeito. A vegetação rasteira. E havia lamas bem perto do topo.

Lá no alto, concluída a subida, juntamo-nos a Octave Lapize. Em forma de estátua, a homenagem ao primeiro corredor a passar no Col du Tourmalet, há mais de uma centena de anos. Nesse ano, o de 1910, chegou a Paris com a camisola amarela.

Não havia nenhuma peça de roupa com essa cor à minha espera. Nem o café tinha as portas abertas. O café teve de ser novamente adiado. Mas a sensação de que o desafio tinha sido superado preenche-me. A troca de meia dúzia de palavras em francês macarrónico com um outro ciclista, de uma outra geração, que tinha subido pelo lado oposto, serviu para partilhar o que tínhamos em comum naquele momento: o prazer de andar de bicicleta e nos desafiarmos para fazer o mesmo que os nossos ídolos. Porque esta é uma das belezas desta modalidade. Podemos fazer o mesmo que os melhores e nos mesmos palcos.

A descida foi simples e lenta. Sem riscos. Sem história. Apenas o maior movimento de pessoas e automóveis. Parecia que a serra estava, finalmente, a acordar.

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