É coveiro de profissão

Experiências, Gastronomia, Viagens

Não lhe perguntei o nome. Não sei, sequer, a sua idade. De enxada na mão, despertou a minha curiosidade. É coveiro há cinco anos. Todos os dias abre e fecha buracos. Aproveita o calor proveniente das entranhas da terra. Não para enterrar os mortos. Para cozinhar. A economia das Furnas, em São Miguel, Açores, aproveita o fenómeno geológico de um vulcão que não tem actividade eruptiva desde 1630… desde há quase 400 anos.

Mas voltemos a este senhor que, de enxada na mão, coloca e retira dos buracos feitos na terra, aquele que é o prato mais típico e famoso da região: o cozido. Junto a um lago majestoso, a terra fumega. O parque de estacionamento, criado para receber os muitos turistas curiosos pela forma como a Natureza se expressa, fica para trás. O cheiro a enxofre é evidente.

À primeira vista, há duas zonas em que a terra é remexida. A mais próxima do lago, onde os “fornos” têm uma temperatura a rondar os 70º. A mais distante, temporariamente inativa “porque a água da lagoa subiu e tornou essa área menos estável”, explica o responsável por um dos restaurantes da vila, chega aos 90º graus e “é melhor”, adianta.

O processo de abertura do buraco e retirada das panelas é relativamente rápido. Não demorará mais do que um ou dois minutos. Dá para uma conversa breve. “Sou coveiro há cinco anos. Já não consigo comer cozido”, explica o senhor que faz desta cozinha natural o seu ganha pão. A intensidade do cheiro a enxofre é a principal responsável por esta resistência ao prato da terra.

“Sabe o que gosto? Arroz doce. É o melhor do mundo.” A conversa continua assim. Praticamente do nada. A julgar que nos ficaríamos pela conversa do cozido e como se cria esta intolerância. Não. Há mais. Há outros pratos. Há arroz doce. “O melhor do mundo”, realça. A justificação poderá ser científica. Não a procurámos nestes três dedos de conversa. Apenas explicou que “é mais doce. Um doce diferente.” E ficámos assim. Despedimo-nos. Agradeci. E reservei mesa para almoçar cozido…

Um monstro chamado Tourmalet

Viagens

Uma viagem de automóvel entre Portugal e França pressupunha percorrer cerca de 1500 quilómetros em dois dias. O itinerário ideal sugeria entrar em Espanha pela fronteira de Chaves, seguir em direcção a Nordeste e passar para o território francês perto do Golfo da Biscaia, no extremo ocidental da cadeia montanhosa dos Pirinéus.

Rumo a Este, tinha de cruzar a infame pelo lado Norte. No meu pensamento surgem imagens de superação. Recordações de infância, da adolescência. Memórias das férias de Verão. Do tempo em que, com temperaturas proibitivas, as tardes eram passadas resguardado do sol, em casa, muitas vezes em frente à televisão. Às vezes, porque durante a Volta a França, apenas os dias de montanha me deixavam colado ao ecrã.

A passagem pelos Pirinéus era sempre marcante. Em particular, o Tourmalet. Não eram os nomes, os símbolos de uma modalidade que durante 23 dias se excedia e superava limites. Era o desafio, a capacidade de fazer o quase impossível que me fascinava.

Ao volante, ali estava eu, a passar ao lado dos Pirinéus. Numa das paragens, ainda em Espanha, uma breve pesquisa na Internet deixou perceber quão longe do topo da mais marcante subida iria passar. Não era um grande desvio. Perfeitamente exequível. Apenas implicava percorrer, no primeiro dia de viagem, mais de 900 quilómetros.

O Tourmalet fica a 2115 metros de altitude. É o topo montanhoso com acesso por estrada de asfalto mais alto nos Pirinéus. Tornou-se um símbolo de ambição e superação, em particular para ciclistas, a partir de 1910, ano em que a organização da Volta a França o integrou no percurso da mais importante prova de ciclismo no planeta.

Campan é uma localidade praticamente no sopé dos Pirinéus. É a partir daí que em inúmeras ocasiões, os ciclistas profissionais se lançaram ao ataque desta que é uma das mais impressionantes subidas do ciclismo mundial. Nova busca cibernética à procura de um local para pernoitar. Independentemente da proximidade ou não do Tourmalet, precisava de descansar.

O início oficial de uma das subidas é em Sainte Marie de Campan. São pouco mais de 17 quilómetros até ao alto. O local onde fiquei era um pouco mais acima e, sem definir planos, sabia que, se decidisse lançar-me ao desafio, tinha duas hipóteses: ou descia até à localidade e fazia tudo desde o início ou partia logo dali.

O despertador ainda não tinha tocado quando acordei. Era noite escura. Tive de esperar. Foi quando começou a amanhecer, já equipado, que saí. A pedalada não era vigorosa. Aqui não importava nada relacionado com a técnica do ciclismo, como a cadência, a velocidade ou o pulso. Apenas sentia que estava a pisar os mesmos centímetros de chão que aqueles enriqueceram o meu imaginário desportivo.

O final de setembro nos Pirinéus pode ser frio. Estavam 10º quando arranquei à conquista do Col du Tourmalet. A vegetação era verde e a estrada estava deserta. Ouvia-se água a correr e, junto à berma, de quilómetro em quilómetro, há um sinal que nos diz o que nos espera. Por exemplo:
Altitude: 1385 m.
Sommet à: 8 km
Moyenne de la pente: 8,5%
Durante a subida, as marcas da Volta a França são evidentes. E recorrentes. Há bicicletas desenhadas. Há a forquilha do diabo que já se tornou indissociável das principais corridas de bicicletas.

A altitude mais elevada faz baixar a temperatura. O mínimo foi de 6º. O tráfego era quase inexistente. Passavam apenas alguns carros com agricultores ou corredores que iam explorar a serra. A vegetação tornava-se mais baixa. Havia vacas a pastar junto à estrada. O topo estava mais perto e as últimas casas situavam-se a cerca de 1700 metros de altitude. É La Mongie, estação de esqui que, àquela hora, ainda não tinha qualquer café aberto. Parar estava, por isso, fora de questão. E o Tourmalet esperava-me.

Só depois do aglomerado de betão é que senti o sol que já ia alto. Ajudava a relativizar o frio sentido, tal como a ascensão ininterrupta desde que comecei a pedalar. Entretanto, parece que os Pirinéus se transformaram. O ar era mais rarefeito. A vegetação rasteira. E havia lamas bem perto do topo.

Lá no alto, concluída a subida, juntamo-nos a Octave Lapize. Em forma de estátua, a homenagem ao primeiro corredor a passar no Col du Tourmalet, há mais de uma centena de anos. Nesse ano, o de 1910, chegou a Paris com a camisola amarela.

Não havia nenhuma peça de roupa com essa cor à minha espera. Nem o café tinha as portas abertas. O café teve de ser novamente adiado. Mas a sensação de que o desafio tinha sido superado preenche-me. A troca de meia dúzia de palavras em francês macarrónico com um outro ciclista, de uma outra geração, que tinha subido pelo lado oposto, serviu para partilhar o que tínhamos em comum naquele momento: o prazer de andar de bicicleta e nos desafiarmos para fazer o mesmo que os nossos ídolos. Porque esta é uma das belezas desta modalidade. Podemos fazer o mesmo que os melhores e nos mesmos palcos.

A descida foi simples e lenta. Sem riscos. Sem história. Apenas o maior movimento de pessoas e automóveis. Parecia que a serra estava, finalmente, a acordar.

Eroica Limburg: uma aventura épica

Viagens

Em 1997 Giancarlo Brocci decidiu criar a L’Eroica, uma prova de ciclismo dedicada aos modelos construídos até 1987, com seletores de mudanças no quadro e pedais de plataforma ou de correia. Disputada inicialmente nas estradas de gravilha da Toscânia, a prova depressa se propagou pelo mundo fora existindo hoje em dia eventos nos Estados Unidos, África do Sul, Japão, Espanha, Reino Unido e Holanda.

Organizada em Valkenburg, perto de Maastricht, capital da província neerlandesa de Limburgo, a primeira edição da Eroica Limburg não podia ter escolhido melhor local. Exibindo uma enorme herança histórica no ciclismo mundial, a região holandesa foi palco de cinco Campeonatos do Mundo, o mais famoso das quais realizado em 1948, no auge da rivalidade de Bartali e Coppi. A edição de 1979 ficou igualmente célebre, pela queda no sprint de Battaglin, ganho por Jan Raas. Mas a coroa de glória ciclista de Limburg – uma pequena vila medieval com 8000 habitantes, ensanduichada entre a Bélgica e a Alemanha – é a clássica Amstel Gold Race. Percorrendo várias das ruas com nomes de ciclistas famosos, e terminando no Cauberg, uma rampa com 1200 metros de extensão com um gradiente médio de 5,8 por cento e máximo de 12 por cento, a Amstel Gold é uma presença assídua no centro da vila, que todos os anos é palco de uma intensa peregrinação a pedal.

Vinda diretamente de Inglaterra, da gama de aluguer da Glory Days (http://glorydays.cc), a minha bicicleta Cougar, de 1983, resplandecia ao sol. Exibindo com orgulho os selos da Reynolds nos esguios tubos de aço, a Cougar vermelha e amarela vinha completa com guiador e avanço Cinelli, travões e alavancas Shimano 105, rodas Mavic MA40 700c, mudanças FSA com pedaleiro duplo à frente e cassete de seis velocidades atrás, e um confortável selim Brooks B17. Uma escolha ideal para enfrentar os variados pisos da Eroica. Com três percursos de 60, 100 ou 160 quilómetros à escolha, a Eroica Limburg prometia zonas planas, mas também algumas subidas bem famosas, não esquecendo vários estradões de gravilha e terra batida. Dada a extensão dos percursos, a passagem das fronteiras com a Bélgica e Alemanha era praticamente inevitável, oferecendo um sabor internacional à aventura.

Uma aventura que começou por atravessar a pedreira de giz Gemeentegrot, e que passou em seguida por oferecer navegação através dos estradões de cascalho e terra batida que servem de acesso aos campos para os agricultores. Seguindo em pelotão, a mistura entre momentos de lazer e de pura adrenalina – fosse a subir rampas de 20 por cento, fosse a descer em caminhos de terra – foi constante. O sentimento de camaradagem era acentuado durante os períodos de descanso, onde não faltaram doces e salgados da região. Com o dever cumprido, e nenhum furo a registar, a prova de 100 quilómetros ficou completa seis horas. Não fossem as paragens para abastecer o corpo, e provar as cervejas locais, e o tempo teria sido inferior. Mas a aventura não seria tão épica.

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A coroa de glória ciclista de Limburg – uma pequena vila medieval com 8000 habitantes, ensanduichada entre a Bélgica e a Alemanha – é a clássica Amstel Gold Race
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Organizada em Valkenburg, perto de Maastricht, capital da província neerlandesa de Limburgo, a primeira edição da Eroica Limburg não podia ter escolhido melhor local
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A venda ambulante feita em automóveis antigos acrescentava um sabor especial ao evento
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Imagem: Paolo Martelli

À descoberta do Douro

Viagens

O vale do Douro podia muito bem ser encantado, tal é a beleza e magia das suas encostas. Partindo da cidade do Porto, onde o rio desagua no mar e os vinhos do Porto são produzidos, são várias as formas de ficar a conhecer esta paisagem cultural, inscrita como Património Mundial: por estrada, comboio ou mesmo de barco. Mas nenhuma é tão bela quanto por bicicleta. Há que começar em Vila Nova de Gaia, com uma visita às caves onde o vinho do Porto é envelhecido, admirando de seguida as paisagens rio a cima, e ficando a conhecer as vinhas, aldeias e vilas, até chegar a Miranda do Doudo, o ponto onde o rio entra em Portugal. Já no Peso da Régua, o Museu do Douro oferece uma perspetiva diferente da região e da produção de vinho.

A planear fazer uma volta de 60 km, deixei o hotel um pouco antes das 9 da manhã, garantindo temperaturas mais frescas e um regresso adiantado. Famosa pela sua beleza, pedalei rio acima através da Estrada Nacional número 2 (EN2). E enquanto os primeiros 15 km foram planos, a viragem para dentro em direção a Tabuaço revelou um monstro de subida. Estendendo-se por nove extenuantes quilómetros, esta incrível parede levou-me até às vinhas, dos originais 90 metros de altitude para os 628 metros, com gradientes algumas vezes acima dos 20 por cento. Mas à medida que a subida endureceu, o cenário tornou-se ainda mais impressionante.

No topo da magnífica colina, a obrigatória paragem para fotografias foi refrescante. Em Tabuaço iniciei a rápida descida. Tal como o pequeno rio Távora, flui rapidamente em direção ao Douro, admirando as maravilhas naturais do território. A chegada ao Peso da Régua foi marcada pela passagem da antiga Ponte Metálica, um símbolo da arquitetura clássica e das vinhas preparadas à mão no Douro.

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No topo da magnífica colina, a obrigatória paragem para fotografias foi refrescante
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A viragem para dentro em direção a Tabuaço revelou um monstro de subida. Estendendo-se por nove extenuantes quilómetros, esta incrível parede levou-me até às vinhas
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A chegada ao Peso da Régua foi marcada pela passagem da antiga Ponte Metálica, um símbolo da arquitetura clássica e das vinhas preparadas à mão no Douro
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Espanha aqui ao lado

Viagens

Uma das marcas do Alto Alentejo e do Parque Natural da Serra de São Mamede é a proximidade com Espanha. Não precisamos de percorrer muitos quilómetros para ouvirmos outra língua, conhecermos outros costumes. Em Portugal, chamamos a quem vive perto da fronteira, Raianos. Porque a fronteira é a raia.

Viver perto do estrangeiro tem verdadeiras particularidades. Já lá vai o tempo do contrabando, em que determinados produtos entravam e saíam de Portugal por vias menos legais. Já não é sequer preciso apresentar documentos quando passamos para o outro lado. Nem há polícia a controlar as fronteiras. Cruzar esta linha é tão simples como passear dentro do território. Mas depressa nos apercebemos que, apesar da proximidade, há tantas diferenças. Na língua, nos hábitos de vida, na gastronomia.

Na Gazeta Rides adoramos o desafio da subida inclinada, deslumbramo-nos com as paisagens estonteantes do Alto Alentejo e não perdemos uma oportunidade de parar para um reforço energético. Quando chegamos a Espanha, é difícil recusar uma tapa de queso manchego ou um bocadillo de jamón ibérico. Há lá melhor forma de ganhar forças para o regresso?

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Em Portugal, chamamos a quem vive perto da fronteira, Raianos. Porque a fronteira é a raia
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Hoje em dia, cruzar a fronteira entre Portugal e Espanha é tão simples como passear dentro do território
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Na Gazeta Rides adoramos o desafio da subida inclinada, deslumbramo-nos com as paisagens estonteantes do Alto Alentejo e não perdemos uma oportunidade de parar para um reforço energético
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Quando chegamos a Espanha, é difícil recusar uma tapa de queso manchego ou um bocadillo de jamón ibérico