Dois amigos. Bicicletas. Experiências. Viagens. Trabalho. Comida. O dia-a-dia. Os gostos de cada um. A partilha. É disto que se trata quando falamos da Gazeta Rides.
Há duas semanas, na pequena aldeia de São Sebastião da Giesteira, aconteceu algo que me deixou de coração cheio. Num pequeno café, daqueles que funcionam na sede do clube da terra, paguei a conta com moedas. Ao tirar a carteira, as notas que tinha, juntamente com alguns talões de despesas feitas nesses dias, caíram. Não me apercebi. Não me senti mais leve e fiz-me à estrada. Conduzi durante cinco quilómetros. Sem a sensação de que me tinha esquecido de algo, ou tivesse perdido qualquer coisa.
Parei junto a uma estrada mais movimentada. Minutos depois, não mais do que dois, pára um carro junto à carrinha que conduzia. Um senhor sai de lá prontamente e pergunta-me se tinha estado no café da pequena aldeia. Respondi que sim e, de forma expontânea, o mesmo senhor estica a mão. Mostra-me uma embalagem de plástico fechada com notas e talões lá dentro.
“Deixou cair isto. A minha mãe recolheu mas como não tinha o seu contacto, ligou-me e pediu-me para o procurar para lhe entregar isto”, explicou-me ainda com a adrenalina evidente de quem não tinha a certeza de ter cumprido a missão.
Fiquei sem pinga de sangue. Não sei se por ter recuperado o que ainda não tinha percebido que perdera, ou se pelo esforço conjunto daquela família que tudo fez para que eu não passasse por uma grande preocupação.
Fez ontem, quarta-feira, duas semanas que este episódio aconteceu. Já hoje, nova história. Elementos em comum? Voltou a ser numa pequena aldeia. Desta vez a de Degolados, no concelho de Campo Maior.
Parei a meio de uma volta de bicicleta. Voltei a um sítio onde costumava parar de madrugada, em tempos, em viagens para Lisboa com passagem por terras do país vizinho. O café da manhã esperava-me. Estacionei a máquina de duas rodas numa esplanada montada no parque da terra. Entrei numa espécie de quiosque mais apetrechado. Não estava ninguém. Não tinha interlocutor. De repente, um senhor – Eduardo é o seu nome – abordou-me, já do outro lado do balcão:
“A dona do café não está. Teve de ir tratar de uma coisa. Vamos lá a ver se consigo ajudá-lo”, disse-me.
“Eu só quero um café. Cheio, por favor. É possível?”, pedi.
Era uma tarefa que Eduardo sentia poder cumprir. Assim bebi um belo café, na esplanada, a desfrutar da calma e tranquilidade alentejana num junho primaveril, com temperaturas a rondar os 20 graus centígrados.
É incrível como é que, apesar de fazer algumas visitas ao café de São Sebastião da Giesteira, a dona tenha pedido ao filho para se meter no carro e fazer-se à estrada para me entregar o que tinha perdido.
É bonito ver que, apesar de tudo, a dona do café em Degolados ainda pode confiar nos vizinhos para lhe guardarem o estabelecimento. E ainda o mantenham com serviços mínimos.
Nos Galegos, aldeia quase deserta do concelho de Marvão localizada bem perto da fronteira com Espanha, as histórias do contrabando e dos caminhos alternativos para o outro lado fazem parte do passado. Ajudam a construir um imaginário de pobreza, subsistência, fuga às autoridades e levam-nos a viajar no tempo.
À entrada da terra, a partir da estrada que nos leva a Espanha, mais um marco que nos leva para outros tempos. A antiga escola primária, onde já não há crianças a aprender, construída com a arquitectura típica do Estado Novo, o período ditatorial que marcou o século XX em Portugal.
Do outro lado da estrada, na Casa dos Galegos, acontece algo único e bom. Eu tive uma das melhores experiências gastronómicas da minha vida. Chama-se Fago. É um clube gastronómico que não reúne com regularidade. É especial.
Numa noite fria de início de fevereiro, Daniel Boto, o cícerone, e José Diogo Branco, o artista da cozinha, recebem-nos na sala de uma das duas casas que constituem este turismo rural para a segunda noite de Petiscos Pedidos: um jantar inspirado em pequenas delícias. O espaço pequeno e acolhedor faz-nos voltar ao tempo dos nossos passados, em que se vivia em alojamentos típicos alentejanos, como aqueles que, com mais ou menos contacto, aprendíamos na escola primária. A lareira já não tem fumeiro. O recuperador de calor ali colocado cria um ambiente de mais conforto. As mesas estão postas e esperam as visitas. Nesta edição, são 13, os comensais.
O gelo quebra-se depressa. “Olá, eu sou o Miguel”, diz-nos, a mim e à Cristina, um senhor, alto de cabelo branco, com um sorriso rasgado e honestamente entusiasmado com o que vamos experimentar neste jantar na Casa dos Galegos. Na sala, apesar de poucos, há tantas histórias diferentes para contar. A mesa mais numerosa é composta, na maioria, por estrangeiros. Noutra, com três pessoas, gente da região com idades a rondar os 30 anos. Ao nosso lado, outro casal. O Miguel e a Cláudia. Não são nómadas, mas deixam, com regularidade, a grande cidade para trabalharem uma verdadeira paixão e produzirem o seu próprio azeite biológico.
O cuidado está nos pormenores. A lavanda em jarro que perfuma a sala, as ementas impressas para cada um dos convidados com a imagem do clube e a água aromatizada com laranja e limão. Os guardanapos de pano com uma cor muito particular – uma espécie de tijolo deslavado -, os pratos de barro, como se impõe, copos de pé alto para o vinho. Em cima do prato está o guardanapo. Por cima, está a ementa para esta experiência.
Mil-folhas de salmão Cebolinho, mel, pele de salmão e pólen de abelha
Os pratos do cardápio são sete. Começamos com um pão com flor de sal e um surpreendente pesto de castanhas. Quem diria que conjugaria. Não só conjuga como funciona muito bem. O mil folhas de salmão, servido em cima de uma guardanapo de tecido, para comer de uma só vez deixou-me muito intrigado. Fiquei com a sensação de que havia algo fumado. Creio que fosse a pele do mesmo, crocante, que estava no topo deste “bolo”.
Churros com boletus Champignons, molho hoisin e gema de ovo em soja
O serviço não pára e as conversas também não. Extravasam as mesas e começam a haver diálogos cruzados, conversas de grupo. Afinal, pertencemos todos ao mesmo clube. O Daniel entra e sai com mais pratos e sugestões. Os tomates e fisálides grelhados, com abacate e alface romana sugerem um prato vegetariano. Mas as pequenas tiras de toucinho não só exaltam o sabor do prato como realçam o crocante da verdura.
Ainda não chegámos a meio mas a noite ainda é uma criança. Em algumas ocasiões na minha vida, atravessei a fronteira e, de madrugada, comia os tradicionais churros com chocolate. O Diogo inspirou-se neste petisco tradicional espanhol e apresentou os mesmos mas com molho de soja, cogumelos e uma gema de ovo. Delicioso!
Tomate-cereja e physalis grelhados Abacate com pó de tomate, alface romana e redução balsâmica de romã e poejo
Os cubos de porco preto, com batata doce frita, chips de kale deram seguimento ao repasto. Mas foi a mousseline de caril que me deixou perdido. Os restantes ingredientes estavam equilibrados e saborosos. Só que aquele creme conseguiu, por si, surpreender-me. Pela textura, pela consistência, pelo sabor. Se a isso juntar os chips de kale estaladiços, confesso que fiquei, deveras, impressionado.
Para terminar, mais uma boa surpresa. Eu não sou muito dado a sobremesas com ou de fruta. Na ementa, lia-se que teríamos um parfait de alperce e gengibre. As expectativas não eram altas, apenas porque não sou dado a estes paladares mais frutados. Quando a sobremesa ficou à minha mercê, tudo mudou. A combinação de sabores e, mais uma vez, as texturas, deixaram-me rendido
Sem margem ou tolerância para mais experiências culinárias, o final da refeição foi o momento em que o Diogo se livrou dos tachos e das panelas para se juntar ao grupo. Neste clube gastronómico, perdido no meio da serra de São Mamede, quase em Espanha, tudo passa a fazer ainda mais sentido. Porque falamos, conversamos, ouvimos histórias que tornam a experiência mais concreta e com substância. Conhecemos quem prepara e conjuga os ingredientes, os sabores… e os transforma. Entretanto, entre as conversas, provamos uma madalena com sálvia a acompanhar o café – que no nosso meu caso foi descafeinado.
Depressa passámos quatro horas que foram de partilha. Porque um jantar é isso. Estar à mesa é,l mais do que uma oportunidade para comer. É uma possibilidade de socializar e de viver mais uma experiência. No Fago, foi isso que aconteceu. E é para repetir. Em breve!
Regresso à escrita para este nosso projecto online, Gazeta Rides, com os dedos dos pés ainda a recuperarem, e a descongelarem, depois de 30 quilómetros a pedalar com um ambiente típico de inverno ao qual ainda não nos habituámos muito bem neste ano.
Quando o termómetro do nosso ciclocomputador marca 5,5º mas a temperatura sentida, seja pela chuva, pelo nevoeiro ou pelo vento, é negativa, tenho de concordar que as condições não são as melhores para uma volta de bicicleta. Porém, não diria que tenho alergia, mas a ideia de pedalar, de forma estática, num quarto ou numa garagem, mesmo que entretido a ver televisão, uma série ou um filme, não me atrai em nada.
É por isso que, depois de vestir o equipamento de inverno – meias cardadas, calças, camisola interior, camisola com fecho completo, casaco térmico e impermeável, boné, luvas, sapatos (desta vez sem capas para a chuva) capacete e óculos – e perder mais 10 minutos do que quando utilizo, apenas, roupa de verão, enfrento a intempérie.
Os primeiros minutos são de indecisão. Não sei muito bem quantos quilómetros fazer, para onde ir. Rolar pode ser apetecível para aumentar a distância. Mas o vento desmoraliza qualquer um. Além disso, há a chuva e o nevoeiro. Não convém, por isso, sair para muito longe. É melhor andar por perto, não mudemos de ideias e tenhamos de fazer a maratona para regressar a casa.
A coragem e a vontade ainda não subiram nos índices. Talvez um café ajude. A paragem torna-se obrigatória, com menos de um quilómetro percorrido. A conversa com um amigo que entretanto se junta faz-me acordar para o dia e para a volta. Uma mensagem de outro amigo diz que já tenho companhia para pedalar. Saímos os dois. Mal deixamos a cidade, ao fim de 500 metros, começa a chover com mais intensidade. Não há volta a dar. Agora, é aguentar. Percorremos as estradas mais ou menos planeadas após dois dedos de conversa no início. O relevo torna-se mais irregular. Faz-se melhor em dias de mau tempo. Porque as dificuldades e o seu nível não deixam de ser relativos.
O café é sempre uma boa desculpa para nova paragem. Já a caminho de casa. Desta vez são abatanados. Na prática, são cafés em chávena de meia de leite. Estômago e corpo quentes. Pés gelados. Não há volta a dar. A situação só se inverte com um banho de água quente, quando chegar a casa. O percurso faz-se devagar. Não há espaço para excessos ou maluquices. O tempo, com a chuva, o vento e o nevoeiro, já são risco suficiente.
Foram 30 quilómetros. Mais coisa, menos coisa. Foram 478 metros de acumulado positivo. Foi parte de uma manhã bem passada a desfrutar da região, da meteorologia difícil, da companhia. Entretanto as nuvens dissiparam-se e parou de chover. Mas isso agora pouco importa para quem já está em casa, mais quente, protegido de uma intempérie que levou os técnicos da meteorologia a lançarem alertas, sentado a escrever em frente ao computador.
Nota: Este texto foi escrito com On The Road Again (Live), de Jack Broadbent, como banda sonora.