O hábito de comer (fago)

Gastronomia

Nos Galegos, aldeia quase deserta do concelho de Marvão localizada bem perto da fronteira com Espanha, as histórias do contrabando e dos caminhos alternativos para o outro lado fazem parte do passado. Ajudam a construir um imaginário de pobreza, subsistência, fuga às autoridades e levam-nos a viajar no tempo.

À entrada da terra, a partir da estrada que nos leva a Espanha, mais um marco que nos leva para outros tempos. A antiga escola primária, onde já não há crianças a aprender, construída com a arquitectura típica do Estado Novo, o período ditatorial que marcou o século XX em Portugal.

Do outro lado da estrada, na Casa dos Galegos, acontece algo único e bom. Eu tive uma das melhores experiências gastronómicas da minha vida. Chama-se Fago. É um clube gastronómico que não reúne com regularidade. É especial.

Numa noite fria de início de fevereiro, Daniel Boto, o cícerone, e José Diogo Branco, o artista da cozinha, recebem-nos na sala de uma das duas casas que constituem este turismo rural para a segunda noite de Petiscos Pedidos: um jantar inspirado em pequenas delícias. O espaço pequeno e acolhedor faz-nos voltar ao tempo dos nossos passados, em que se vivia em alojamentos típicos alentejanos, como aqueles que, com mais ou menos contacto, aprendíamos na escola primária. A lareira já não tem fumeiro. O recuperador de calor ali colocado cria um ambiente de mais conforto. As mesas estão postas e esperam as visitas. Nesta edição, são 13, os comensais.

O gelo quebra-se depressa. “Olá, eu sou o Miguel”, diz-nos, a mim e à Cristina, um senhor, alto de cabelo branco, com um sorriso rasgado e honestamente entusiasmado com o que vamos experimentar neste jantar na Casa dos Galegos. Na sala, apesar de poucos, há tantas histórias diferentes para contar. A mesa mais numerosa é composta, na maioria, por estrangeiros. Noutra, com três pessoas, gente da região com idades a rondar os 30 anos. Ao nosso lado, outro casal. O Miguel e a Cláudia. Não são nómadas, mas deixam, com regularidade, a grande cidade para trabalharem uma verdadeira paixão e produzirem o seu próprio azeite biológico.

O cuidado está nos pormenores. A lavanda em jarro que perfuma a sala, as ementas impressas para cada um dos convidados com a imagem do clube e a água aromatizada com laranja e limão. Os guardanapos de pano com uma cor muito particular – uma espécie de tijolo deslavado -, os pratos de barro, como se impõe, copos de pé alto para o vinho. Em cima do prato está o guardanapo. Por cima, está a ementa para esta experiência.

Mil-folhas de salmão
Cebolinho, mel, pele de salmão e pólen de abelha

Os pratos do cardápio são sete. Começamos com um pão com flor de sal e um surpreendente pesto de castanhas. Quem diria que conjugaria. Não só conjuga como funciona muito bem. O mil folhas de salmão, servido em cima de uma guardanapo de tecido, para comer de uma só vez deixou-me muito intrigado. Fiquei com a sensação de que havia algo fumado. Creio que fosse a pele do mesmo, crocante, que estava no topo deste “bolo”.

Churros com boletus
Champignons, molho hoisin e gema de ovo em soja

O serviço não pára e as conversas também não. Extravasam as mesas e começam a haver diálogos cruzados, conversas de grupo. Afinal, pertencemos todos ao mesmo clube. O Daniel entra e sai com mais pratos e sugestões. Os tomates e fisálides grelhados, com abacate e alface romana sugerem um prato vegetariano. Mas as pequenas tiras de toucinho não só exaltam o sabor do prato como realçam o crocante da verdura.

Ainda não chegámos a meio mas a noite ainda é uma criança. Em algumas ocasiões na minha vida, atravessei a fronteira e, de madrugada, comia os tradicionais churros com chocolate. O Diogo inspirou-se neste petisco tradicional espanhol e apresentou os mesmos mas com molho de soja, cogumelos e uma gema de ovo. Delicioso!

Tomate-cereja e physalis grelhados
Abacate com pó de tomate, alface romana e redução balsâmica de romã e poejo

Os cubos de porco preto, com batata doce frita, chips de kale deram seguimento ao repasto. Mas foi a mousseline de caril que me deixou perdido. Os restantes ingredientes estavam equilibrados e saborosos. Só que aquele creme conseguiu, por si, surpreender-me. Pela textura, pela consistência, pelo sabor. Se a isso juntar os chips de kale estaladiços, confesso que fiquei, deveras, impressionado.

Para terminar, mais uma boa surpresa. Eu não sou muito dado a sobremesas com ou de fruta. Na ementa, lia-se que teríamos um parfait de alperce e gengibre. As expectativas não eram altas, apenas porque não sou dado a estes paladares mais frutados. Quando a sobremesa ficou à minha mercê, tudo mudou. A combinação de sabores e, mais uma vez, as texturas, deixaram-me rendido

Sem margem ou tolerância para mais experiências culinárias, o final da refeição foi o momento em que o Diogo se livrou dos tachos e das panelas para se juntar ao grupo. Neste clube gastronómico, perdido no meio da serra de São Mamede, quase em Espanha, tudo passa a fazer ainda mais sentido. Porque falamos, conversamos, ouvimos histórias que tornam a experiência mais concreta e com substância. Conhecemos quem prepara e conjuga os ingredientes, os sabores… e os transforma. Entretanto, entre as conversas, provamos uma madalena com sálvia a acompanhar o café – que no nosso meu caso foi descafeinado.

Depressa passámos quatro horas que foram de partilha. Porque um jantar é isso. Estar à mesa é,l mais do que uma oportunidade para comer. É uma possibilidade de socializar e de viver mais uma experiência. No Fago, foi isso que aconteceu. E é para repetir. Em breve!

Foto de abertura: Fago

O início do mês (a pedalar)

Experiências

Regresso à escrita para este nosso projecto online, Gazeta Rides, com os dedos dos pés ainda a recuperarem, e a descongelarem, depois de 30 quilómetros a pedalar com um ambiente típico de inverno ao qual ainda não nos habituámos muito bem neste ano.

Quando o termómetro do nosso ciclocomputador marca 5,5º mas a temperatura sentida, seja pela chuva, pelo nevoeiro ou pelo vento, é negativa, tenho de concordar que as condições não são as melhores para uma volta de bicicleta. Porém, não diria que tenho alergia, mas a ideia de pedalar, de forma estática, num quarto ou numa garagem, mesmo que entretido a ver televisão, uma série ou um filme, não me atrai em nada.

É por isso que, depois de vestir o equipamento de inverno – meias cardadas, calças, camisola interior, camisola com fecho completo, casaco térmico e impermeável, boné, luvas, sapatos (desta vez sem capas para a chuva) capacete e óculos – e perder mais 10 minutos do que quando utilizo, apenas, roupa de verão, enfrento a intempérie.

Os primeiros minutos são de indecisão. Não sei muito bem quantos quilómetros fazer, para onde ir. Rolar pode ser apetecível para aumentar a distância. Mas o vento desmoraliza qualquer um. Além disso, há a chuva e o nevoeiro. Não convém, por isso, sair para muito longe. É melhor andar por perto, não mudemos de ideias e tenhamos de fazer a maratona para regressar a casa.

A coragem e a vontade ainda não subiram nos índices. Talvez um café ajude. A paragem torna-se obrigatória, com menos de um quilómetro percorrido. A conversa com um amigo que entretanto se junta faz-me acordar para o dia e para a volta. Uma mensagem de outro amigo diz que já tenho companhia para pedalar. Saímos os dois. Mal deixamos a cidade, ao fim de 500 metros, começa a chover com mais intensidade. Não há volta a dar. Agora, é aguentar. Percorremos as estradas mais ou menos planeadas após dois dedos de conversa no início. O relevo torna-se mais irregular. Faz-se melhor em dias de mau tempo. Porque as dificuldades e o seu nível não deixam de ser relativos.

O café é sempre uma boa desculpa para nova paragem. Já a caminho de casa. Desta vez são abatanados. Na prática, são cafés em chávena de meia de leite. Estômago e corpo quentes. Pés gelados. Não há volta a dar. A situação só se inverte com um banho de água quente, quando chegar a casa. O percurso faz-se devagar. Não há espaço para excessos ou maluquices. O tempo, com a chuva, o vento e o nevoeiro, já são risco suficiente.

Foram 30 quilómetros. Mais coisa, menos coisa. Foram 478 metros de acumulado positivo. Foi parte de uma manhã bem passada a desfrutar da região, da meteorologia difícil, da companhia. Entretanto as nuvens dissiparam-se e parou de chover. Mas isso agora pouco importa para quem já está em casa, mais quente, protegido de uma intempérie que levou os técnicos da meteorologia a lançarem alertas, sentado a escrever em frente ao computador.

Nota: Este texto foi escrito com On The Road Again (Live), de Jack Broadbent, como banda sonora.